Quando equacionei criar este blogue, foi com o pressuposto que colocaria publicações de outras pessoas que se identificassem com a filosofia deste espaço. Consegui realizar este objectivo mais cedo do que imaginara. Renata Correia Botelho, colega e amiga, um dos tesouros mais bem guardados da poesia nacional, aceitou o meu desafio e enviou-me a sua opinião sobre o filme Das Leben der Anderen, estreando, deste modo, a rubrica de críticas deste sitio electrónico. Trata-se, sem dúvida, de uma das películas mais penosas e fascinantes acerca do fantasma dos regimes despóticos. O melhor é dar a palavra à autora deste poético e penetrante texto:
Eu vira o filme dois dias antes, num teatro vazio e escuro que me lembra sempre uma igreja abandonada de Tonino Guerra. Entro e procuro, todas as vezes, a cerejeira a erguer-se do chão e a tocar o céu com os ramos. Naquele dia, saí com uma impressão de fenda, um vago horror misturado com a violenta poesia do filme, como se qualquer coisa em mim se tivesse quebrado e eu não fosse capaz de reconstituir, de me tornar inteira de novo.
As Vidas dos Outros – Das Leben der Anderen no seu título original, uma estreia brilhante do realizador Florian Henckel von Donnersmarck em 2006 – começa em 1984, num país calado e triste, dividido pelo muro de Berlim, e vai até 1991, à actual Alemanha unificada. Conta-nos a história silenciosa que se desenvolve, a princípio unilateralmente, depois em fusão absoluta, entre um oficial da Stasi, o capitão Gerd Wiesler (num magistral desempenho de Ulrich Mühe), e o escritor George Dreyman (Sebastian Koch), cuja vida Wiesler tem por missão espionar. É a história de um capitão impiedoso e austero que lia Brecht – “acima de nós, no lindo céu de verão, uma nuvem abriu o meu olhar. Era muito branca e estava muito alta e quando eu olhei de novo… já lá não estava” – e vivia a liberdade, o sonho e o desejo dos outros pelos auscultadores da Stasi, que adormecia ao som do amor que nunca lhe pertencia e se comovia profundamente com a Appassionata de Beethoven (nome por que é conhecida a sua Sonata nº 23 para piano), tocada pelo escritor que vigiava.
Eu vira o filme dois dias antes, num teatro vazio e escuro que me lembra sempre uma igreja abandonada de Tonino Guerra. Entro e procuro, todas as vezes, a cerejeira a erguer-se do chão e a tocar o céu com os ramos. Naquele dia, saí com uma impressão de fenda, um vago horror misturado com a violenta poesia do filme, como se qualquer coisa em mim se tivesse quebrado e eu não fosse capaz de reconstituir, de me tornar inteira de novo.
As Vidas dos Outros – Das Leben der Anderen no seu título original, uma estreia brilhante do realizador Florian Henckel von Donnersmarck em 2006 – começa em 1984, num país calado e triste, dividido pelo muro de Berlim, e vai até 1991, à actual Alemanha unificada. Conta-nos a história silenciosa que se desenvolve, a princípio unilateralmente, depois em fusão absoluta, entre um oficial da Stasi, o capitão Gerd Wiesler (num magistral desempenho de Ulrich Mühe), e o escritor George Dreyman (Sebastian Koch), cuja vida Wiesler tem por missão espionar. É a história de um capitão impiedoso e austero que lia Brecht – “acima de nós, no lindo céu de verão, uma nuvem abriu o meu olhar. Era muito branca e estava muito alta e quando eu olhei de novo… já lá não estava” – e vivia a liberdade, o sonho e o desejo dos outros pelos auscultadores da Stasi, que adormecia ao som do amor que nunca lhe pertencia e se comovia profundamente com a Appassionata de Beethoven (nome por que é conhecida a sua Sonata nº 23 para piano), tocada pelo escritor que vigiava.
Muito mais do que um filme político, este é um filme sobre a arte, o amor e a redenção. Sobre um homem bom. Sobre o seu olhar solitário e terrivelmente belo, que nos faz perceber que são quase sempre as coisas mais simples que nos salvam.
Eu vira o filme dois dias antes quando, numa manhã de Julho, a rádio trouxe até ao meu quarto a notícia da sua morte. Ulrich Mühe morria aos 54 anos, depois de uma vida passada entre a construção civil, os palcos de Berlim e o cinema. Morria dois dias depois de eu me ter apaixonado pelo seu rosto. Como a nuvem branca e muito alta de Brecht, que desaparece no instante único em que a não captamos.
O filme foi muito justamente premiado com o Óscar de 2007 para melhor filme estrangeiro. Saiu em DVD recentemente, comprei-o e vi-o hoje pela segunda vez. Terei de o rever pela vida fora, para ir transformando os seus silêncios em silêncios ainda maiores.
O filme foi muito justamente premiado com o Óscar de 2007 para melhor filme estrangeiro. Saiu em DVD recentemente, comprei-o e vi-o hoje pela segunda vez. Terei de o rever pela vida fora, para ir transformando os seus silêncios em silêncios ainda maiores.
E foi hoje então que tudo se ligou, como aquele insecto misterioso que em criança vi refazer-se da pancada letal e regressar ao voo, e percebi finalmente o puzzle, e fiquei de novo tranquila: o desaparecimento de Ulrich Mühe e daquele seu rosto antigo e subterrâneo, estas primeiras manhãs escuras de Outono, o sol a pôr-se cada dia mais cedo, sob o olhar resignado das gaivotas, a minha avó a ajeitar as flores nas jarras de domingo, a planta que morreu com ela e as saudades dos seus dedos térreos e serenos sobre a pressa inquieta das minhas mãos. E as palavras de Jorge Luis Borges, que vivem comigo como o latejar implacável de um relógio: “uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia (…). Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo?”.
Renata Correia Botelho
Outubro 2007
Texto publicado originalmente no Suplemento Cultural do Açoriano Oriental, sob a coordenação de Mariana Matos, a 30 de Outubro de 2007.
Renata Correia Botelho
Outubro 2007
Texto publicado originalmente no Suplemento Cultural do Açoriano Oriental, sob a coordenação de Mariana Matos, a 30 de Outubro de 2007.
4 comentários:
Realmente é um dos tesouros mais bem guardados da poesia portuguesa, os meus parabéns! :)
Delicioso texto. Que bom que é, estar com esta pequena. Renata Botelho, os meus Parabéns
Toni
O filme em causa é excelente, talvez um dos melhores da última década no seu estilo. Recordo-me de uma cena memorável: as técnicas utilizadas pelo tal "capitão impiedoso e austero" no interrogatório inicial. Fantástico!
O filme é excelente!
Quanto ao texto, foi a crítica cinematográfica mais bonita e "poética" que já li. Mas também sou sincera: da amiga Renata não esperava outra coisa! :.--))
Bjs,
Raquel
Enviar um comentário